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Cultural

Crônica – Última Parada

Helô Bello Barros, em exercício ficcional sobre Ernest e Lilly Growald

Ernest Growald faleceu no último dia 11 de junho de 2021 e sua esposa, Lilly, no dia 23. Doze dias separam o passamento do casal. Tantas coisas vêm à nossa cabeça quando nos deparamos com um fato como esse. A primeira delas — Que amor é esse? A força do vínculo construído, como se o amor fosse o próprio ar que respiram. A ponto da pessoa que fica definhar em tão pouco tempo.

As fotos do casal Growald, sócios do Paulistano, estão no obituário das portarias do Clube. Casos como esse não são comuns, mas sempre ouvimos falar de um ou outro. Histórias que deixam o perfume de um romance de cinema, mas sabemos que a vida não é bem assim.

Entre 1938 e 39, na iminência da Segunda Guerra, pais judeus alemães, austríacos e tchecos assumiram o risco de entregar seus filhos para que deixassem seus países em direção à Inglaterra. Kindertransport, uma viagem de trem que mais de 10 mil crianças fizeram rumo ao desconhecido. Chegaram ao destino sem conhecer ninguém, sem saber inglês.

Perambulavam de um abrigo a outro e, de vez em quando, acolhidos numa casa de família. Eram o retrato da dor e do abandono.

Roland Barthes em Fragmento de um discurso amoroso diz: “Ausência. Todo episódio de linguagem que encena a ausência do objeto amado — sejam quais forem a causa e a duração — e tende a transformar essa ausência em provação de abandono.” No mais tenro da vida, essas milhares de crianças viveram o abandono, dos pais, do país e tudo que até então era familiar.

Em junho de 2002, Ivan Finotti escreveu, na Folha de S.Paulo, as trajetórias de duas dessas crianças. Ernest Growald, com 12 anos, saiu de Berlim, Lilly Kohn, com 10, saiu de Viena. Cada um levando uma mala e um brinquedo. Na adolescência trocaram de abrigo inúmeras vezes e só se encontraram em 1944, um pouco antes do final da guerra. Se apaixonaram, se casaram e logo vieram para o Brasil. Nenhum dos dois voltou a ver seus pais.

Os Growald foram assassinados num campo de concentração na Polônia e os Kohn, na Rússia. Eles só tinham um ao outro. Doze dias separam o passamento de Lilly e Ernest, cujo amor foi a própria existência, construído sobre os destroços de uma humanidade atroz. Desde o encontro em 1944, eles sabiam que se ela corria perigo, ele também corria, se ele corria perigo, ela estaria por um triz, a ponto de serem o próprio ar um do outro.

No obituário devia estar grafado que eles foram tristes por deixar filhos e netos, mas felizes porque estavam juntos como sempre e para sempre, cada um levando uma mala e um brinquedo.

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